quinta-feira, dezembro 8

Parasitismos e cobardias

Ontem fui assaltado no metro. Estava a ler, senti um encosto, e apercebi-me da falta da carteira. Sem ter a certeza absoluta da identificação tive que arriscar o bluff. Calmamente, muito matter-of-fact:

-"Oh amigo, devolve-me a carteira"
-"No comprendo!" (uma pronuncia que não consegui identificar)
-"Não compreendes uma merda. Devolve-me a carteira. Vê se percebes, não vais a lado nenhum, isto não vai acontecer. Devolve-a agora e não hà chatices nem polícias."

O diálogo prosseguiu assim por mais umas trocas. Depois tentou abandonar o metro. Eu acompanhei-o, agarrado pela lapela. Ainda tinha o livro numa mão e a mochila as costas, e só pensava "que merda, vou estragar o meu livro todo se tiver que lutar".

Ao sair da carruagem identifiquei por instinto um segundo elemento que me pareceu suspeito e que mais ou menos se mexeu em simultâneo com o primeiro. Arrisquei e agarrei-o também. Há quase sempre um parceiro nestas coisas e provavelmente já era ele quem tinha a carteira. Agarrei-os aos dois, levemente, enquanto caminhávamos e discutíamos. Sem violência, eles a tentarem esquivar-se e convencer-me, com uma ar inocentíssimo, eu a alegar uma certeza que não tinha, à espera, a qualquer momento, de uma explosão de violência súbita. Ainda não percebo, passado o instante, como raio é que estava a segurar o segundo tipo se nunca larguei o livro, mas sei que estava porque eles tentaram separar-se nas escadas rolantes e eu puxei o segundo para junto do outro.

Acabaram por desistir e atirar a carteira para longe. Agarrei-a e persegui-os até ter a certeza de que estava lá tudo. Não sei bem se tiraram algum dinheiro, mas se o fizeram não foi muito, porque ainda lá estava bastante. Um terceiro elemento tentou reter-me, estava feito com eles e fingiu ser um "civil prestável" até eu lhe quebrar o bluff. Era o mais forte dos três e estava às minhas costas ainda por cima - foi o que mais me preocupou. Acabou tudo sem violência (ainda fizeram umas ameaças a contra-gosto, mas não se mexeram) e fui-me embora satisfeito com o desfecho.

Porque falo disto?

Porque no interior da carruagem, apesar de estarmos rodeados por dezenas dos meus concidadãos, e da situação ser clara, ninguém se mexeu. Não pedi ajuda. Não acho que seja estético, "agarra que é ladrão" soa-me mal. Mas eu teria ajudado sem me pedirem. Os meninos que ameaçam de porrada o árbitro estavam todos a contemplar o tecto da carruagem com intensa concentração.

Os ladrões são só ladrões. Todos os ecossistemas complexos albergam parasitas. Mas os meus caros concidadãos metem-me asco. Caros amigos Lusitanos, a maioria de vós não passam de miseráveis cobardes. Tirem-vos a polícia e o exército, e meia duzia de palhaços da Al-Qaeda armados de fisgas tomavam Lisboa em trinta minutos.

A população civil do século XXI é só carneirada pronta a abater. Não se prefigura nada de bom.

E isto leva a outros assuntos a tratar de seguida.

15 comentários:

Orlando disse...

Uma vez entrei no metro em Budapeste com uma mala em cada mão. Ia apanhar o avião de volta para Portugal. A carruagem estava vazia. Fui rodeado por três homens que entraram atrás de mim. Não dei por nada. Um série de outros participantes da conferência, todos eles hungaros, que eu mal conhecia, entraram no metro atrás de mim e rodearam-me (eles conheciam o sistema). Os assaltantes desistiram. Nada os obrigou a fazer aquilo. Eu ia ser assaltado depois da carruagem partir. Ainda há esperança no mundo:)

António Araújo disse...

Será que são só os Portugas? Estamos mal!...

Mas creio que não. No teu caso, eles não te conheciam, mas tinham uma ligação contigo por causa da conferência. Isto é, havia uma certa pressão de grupo. Se se portassem como cobardes isso poderia ser-lhes apontado junto aos seus pares.

Sereia disse...

Fogoooo...isso é que é sangue frio!!!

Broken M disse...

Mais outra razão...that's why i'm leaving!!

Broken M disse...

A passividade das pessoas é algo que realmente me irrita profundamente. É que nem sequer se dão ao trabalho de telefonar para a polícia.

Broken M disse...

Agora eu lembrei-me de um outro caso que aconteceu num autocarro quando eu tinha uns 16 anos.
Não se tratava de assalto mas de assédio sexual.
Um homem resolveu no autocarro colocar o seu pénis para fora das calças e fazê-lo roçar numa senhora que estava de costas.
A senhora, no autocarro cheio, tentava afastar-se e não conseguia.
Claro que eu fiquei paralisada e não consegui fazer nada mas as outras dezenas de pessoas no autocarro, principalmente os homens que lá estavam, acham que fizeram alguma coisa? Nada. Ainda para mais houve muita gente que reparou.

António Araújo disse...

Hmm...nesse caso eu percebo um pouco melhor...porque há o choque. Isso é tão inesperado que muita gente não sabe como reagir. Que raio é que se diz ao fulano? E...cof...por onde é que o agarramos?? :D

Mas depois de uns segundos, devia ser possivel reagir...

Ontem, por exemplo, a minha maior dificuldade foi saber o que pensar. A guerra é quase toda psicologica. Os tipos eram, ou simulavam ser, estrangeiros. Nao percebi que lingua falavam porque eram deliberadamente obscuros. Claro que me percebiam perfeitamente, mas isso dificultava a acusação e mesmo a ameaça. E havia toda a questão de eu não ter a certeza absoluta de ter apanhado os tipos certos. Nos primeiros segundos fiz de tudo para ver se se descaiam, desde a ameaça de violencia, e de chamar policia, até ao engodo - disse-lhes que precisava dos documentos, que até podiam ficar com o dinheiro se me entregassem a carteira...só queria uma admissão qualquer ou qualquer sinal que me desse a certeza de que a tinham de facto tirado. Quando se tentaram separar tive essa certeza e já não os largava nem por nada.

No fundo foi tudo muito profissional. Ca para mim eles abortaram a coisa assim que os detectei e so queriam sair dali com um minimo de chatice. Para quê arriscar violencias ou problemas com um tipo teimoso se podem assaltar outro mais facil dali a dez minutos? O terceiro tipo estava la para se por a falar comigo e atrasar-me enquanto os outros se escapavam. O segundo livrou-se da carteira assim que pôde. Na verdade eu dificultei as coisas ao persegui-los a seguir. Pensei que ao menos tinham roubado o dinheiro, o que afinal penso que não fizeram (ao menos não muito, porque não reparei que faltasse algo se substancial).

O terceiro ainda disse, com ar chateado: "ja tens a carteira, que raio é que queres mais?". Pareceu-me genuinamente ofendido, enquanto eu verificava o conteudo. :)

Estava a quebrar o protocolo.

Helena Araújo disse...

Não são só os portugueses. Recentemente assisti na Alemanha a uma cena em que dois rapazes agrediam uma mulher, todos os passantes olhavam com interesse mas nenhum se deu ao trabalho de intervir. E um cunhado meu, alemão, já levou uma tareia por ter tentado evitar que um grupo de vândalos destruíssem a carruagem do metro - que ia cheia de passageiros distraídos.

Contaram-me uma história semelhante a essa do assédio sexual. A mulher teve a presença de espírito de agarrar o pénis e puxar com toda a força. O homem gritava que se matava, e os passageiros dividiam-se entre os que se riam e os que o queriam linchar.

OMWO, pode pôr aqui uma fotografia sua? É que com esta descrição, a agarrar 3 homens sem deixar cair o livro, estou a imaginá-lo assim mais ou menos como um polvo... ;-)

Orlando disse...

Helena, o OMWO é capaz de coisas surpreendentes. Já assisti a várias...

António Araújo disse...

Helena, não é quantos braços se tem, é o que se faz com eles :))

Quando me tento lembrar, acho que devia estar mesmo a agarrar apenas um deles, e ao outro estava mais a barrar, com o braço que tinha o livro. Nas aulas de karate por vezes levanta-se instintivamente so um dedo para o adversario. Por vezes é suficiente para mostrar a intenção e fazê-lo parar por um momento.

No fundo porque ele quer parar, para não passar ao nivel seguinte.

Como disse, acho que eles, tal como eu, ja so queriam abortar a coisa. Ninguem se queria magoar.

E, caso estejas a pensar isso, o meu fisico nao os intimidou de certeza. Eu sei que sei lutar, mas eles não o adivinhariam até experimentar. A unica coisa que os poderia intimidar era a minha teimosia :)

"Short thin guys fight 'til they're burger" (we all think we're Napoleon):)

António Araújo disse...

Hoje foi um dia muito estranho.

Voltei a ver o carteirista numero 1 no metro do marques-de-pombal. Nunca pensei que sucedesse tão cedo. Eu estava à porta, ele entrou, olhou para mim, praguejou, e saiu antes das portas se fecharem. So me apercebi quando ele ja estava la fora.

Agora sou um espanta-melgas!

Também me aconteceu outra coisa hoje, mas nem digo nada porque não iam acreditar. Eu também não acredito. Lisboa na época de Natal parece um episodio da Twilight Zone. E dos maus.

Mas também há coisas bonitas.

Hoje tive uma amostra dos bons, dos maus, e dos feios. Vou tentar adormecer a pensar nos bons. Deram um desenho engraçado :)

Helena Araújo disse...

Conta, conta!
Estou cheia de curiosidade. Se tem a ver com o Natal, e ninguém acredita, só pode ser assim: viste o Pai Natal a bater no Menino Jesus!
:-))

Helena Araújo disse...

PS. Muito bonito, o "desenho engraçado"! E os outros (sim, claro que andei a passear pelo blogue).

snowgaze disse...

Impressionante. Parabéns, pela coragem (ou estupidez? nestas coisas nunca se sabe...) e acima de tudo pela presença de espírito. Essa de manter o livro na mao o tempo todo foi demais. :) Ainda bem que ninguém se aleijou.
Felizmente nunca presenciei situaçao nenhuma dessas. Mas já me roubaram a carteira no shopping (arrábida, Porto), enquanto jantava. Quando me apercebi já os tipos (era um homem e uma mulher) tinham desaparecido. Telefonei logo a cancelar todos os cartoes do banco. No dia seguinte, telefonaram-me do restaurante onde tudo se passou para me avisar que a minha carteira tido sido encontrada (eu nem tinha feito queixa, na pressa em ir para casa telefonar, só em casa é que tinha os números que precisava). Felizmente, só tinham levado o dinheiro, cerca de dois contos, e os cartoes de identificaçao e bancários estavam lá todos.

António Araújo disse...

>Essa de manter o livro na mao o tempo >todo foi demais. :)

Eh lá! Não era um livro qualquer! Era o "The art and craft of drawing", do Vernon Blake, e com as minhas anotações e uns desenhos la dentro! Merecia bem umas nodoas negras :)

Alem disso antes queria usa-lo como tijolo do que deixa-lo por terra :)