quinta-feira, fevereiro 26

Quatro anos de crise

Um blog é entre outras coisas um diário das nossas opiniões. Parece que quando este blog surgiu, há quatro anos, já a crise tinha começado. Espero que dure mais do que a dita cuja. Não vai ser fácil.

segunda-feira, fevereiro 23

Livrarias

Durante a minha adolescência havia vários lugares fetiches em Lisboa. O Estúdio, um mini cinema por cima do Império, ao pé do Técnico. Por lá se viam todos os Bergman's e Kubrik's da época. Havia as lojas da Avenida de Roma. Sobretudo, havia a Buchholz. A Buchholz era a única livraria de Lisboa onde se podia vislumbrar as obras completas do Freud, os filósofos, tudo. Mas o que tornava a Buchholz especial era a velha. A brucha. Havia duas teorias:
- A senhora era judia. Tinha passado anos num campo de concentração nazi. Agora vingava-se nos miudos que só lá compravam um livro de vez em quando.
- A senhora era uma nazi fugida a seguir ao fim da guerra. Dirigia a Buchholz como se fosse a sua antiga ala de Birkenau.
A livraria da Duque de Palmela tem dois andares. No andar de baixo podia-se folhear livremente os livros. O andar de cima era o reino da velha. Era lá que estavam os livros interessantes, que nos iam resolver todos os problemas filosóficos. Assim nós pudessemos ler os indices. Alguns dos meus amigos eram mais afoitos e liam umas páginas. Até ao dia em que ela pôs na rua o senhor do sobretudo de pelo de camelo que teve o desplante de lhe responder.
Voltei hoje à Buchholz. Já não tem o mesmo carisma. Falta a tal senhora. Sobretudo, faltam os livros. Nada mais triste numa livraria do que uma estante vazia. A internet acabou com as livrarias. Resta a FNAC, para as coisas mais simples. Não devia ser assim? Só comecei a comprar sistematicamente livros pela net depois da minha última encomenda, vai para uns dez anos. Voltei lá quinze dias depois: que não me preocupasse, já tinham tratado de tudo. Mais três semanas: olhe, qual era mesmo o nome do livro? Dois meses depois: má cara por eu não me lembrar do nome do dito cujo.
A Biblos abriu vai para um ano, ao pé das Amoreiras. Grande e bonita. Esqueceram-se dos livros. Parece que vai a caminho da falência.
Onde é que eu meti mesmo o cartão visa?

sexta-feira, fevereiro 13

O Príncipe e o Mágico

Era uma vez um príncipe que acreditava em tudo menos em três coisas. Não acreditava em ilhas, não acreditava em princesas, não acreditava em Deus. O seu pai, o rei, disse-lhe que tais coisas não existiam. Como não existiam princesas nem ilhas no reino do seu pai, nem qualquer sinal de Deus, o príncipe acreditava no seu pai.
Um dia o príncipe saiu do palácio e viajou até ao reino vizinho. Aproximou-se do mar e, para seu grande espanto, avistou ilhas e estranhas criaturas que não ousou nomear. Quando procurava um barco para tentar visitar a ilha mais próxima, avistou um homem que passeava na praia envergando um manto.
São verdadeiras aquelas ilhas? -- perguntou o jovem príncipe.
Claro que são verdadeiras! respondeu o homem do manto.
E que criaturas são aquelas?
Claro que são princesas!
Então Deus deve existir! -- gritou o príncipe.
Eu sou Deus! -- respondeu o homem do manto, fazendo uma pequena vénia.
O jovem príncipe voltou ao seu palácio tão rápido quanto pôde.
Então voltastes! -- exclamou o rei seu pai.
Vi ilhas, vi princesas, vi Deus! -- respondeu o jovem príncipe.
O rei não se deixou afectar pela exaltação do príncipe:
Não existem nem ilhas, nem princesas, nem Deus!
Eu vi-os!
E como estava vestido Deus?
Deus usava um manto...
E podias ver os seus sapatos?
Não...
O rei sorriu. Esse é o uniforme dos mágicos! Foste enganado...
O princípe abandonou o palácio e voltou o mais rápido possível ao reino vizinho. Voltou a encontrar o homem do manto.
O meu pai, o rei, disse-me quem o senhor é. Não me voltará a enganar! Agora sei que as ilhas e as princesas não são reais porque o senhor é um mágico!
O homem do manto sorriu.
No reino do teu pai existem muitas ilhas e muitas princesas. Só não as vês, meu rapaz, por causa do feitiço que o teu pai te lançou!
O príncipe voltou a casa imerso nos seus pensamentos. Olhou o seu pai, o rei, nos olhos e perguntou:
Pai, é verdade que não és um rei, mas sim um mágico?
O rei sorriu. Levantou-se e deixou que o seu manto lhe tapasse os pés.
Sim, meu filho, sou apenas um mágico.
Então o homem da praia é Deus?
O homem da praia é apenas um mágico.
Eu preciso de saber a verdade, a verdade por detrás da magia!
Não há verdade por detrás da magia...
Profundamente infeliz,o jovem príncipe anunciou que não podia aceitar tal situação, só a morte o podia libertar.
O rei estalou os dedos e apareceu a Morte. A Morte permaneceu à porta, mas acenou ao príncipe.
O príncipe estremeceu. Lembrou-se das belas princesas irreais que viviam nas belas ilhas que não existiam. Muito bem. Acho que posso suportar a situação.
Muito bem, meu filho. Tu também, começas a ser um mágico.
The Magus, John Fowles.

sexta-feira, fevereiro 6

Prós e Contras

Assisti na segunda-feira a uns minutos do Prós e Contras sobre o caso Freeport. Dum lado estavam um ex-secretário de estado envolvido no processo e várias pessoas com posições próximas dele. Do outro lado pessoas que estavam longe de se lhes opor. Para variar, a apresentadora estava equidistante dos dois lados. Havia alguém do contra? Bem, apareceu alguém da audiência, com direito a uma breve intervenção.
Muito se fala sobre a importância da presunção da inocência, de respeitar o segredo de justiça, de evitar julgamentos na praça pública. Vale a pena reflectir um pouco sobre este tema.
É muito difícil combater a corrupção. Há no entanto uma série de medida bem longe de serem originais, que complicariam a vida a alguma gente. Que tal todos os cidadãos terem de actualizar ano após ano a lista dos seus bens e explicar os aumentos de património em função dos proventos declarados?
Será assim tão drástico considerar que qualquer deputado honesto tem a obrigação de propor uma lei destas na assembleia da república? Esperar que qualquer partido político decente deveria ter uma proposta destas no seu programa? Seria assim tão maledicente dizer que quem não o fizer é suspeito até prova em contrário?
Num país tão pequeno, onde as instituições vivem sobre a pressão asfixiante das pessoas importantes, não será dever patriótico de qualquer membro da polícia judiciária ou do ministério público deitar cá para fora todas as informações que possam contrabalançar essas pressões e dar aos processos uma chance de chegarem ao seu termo?
Será nosso dever de bons cidadãos esperar pelas decisões dos tribunais antes de formarmos uma opinião sobre a inocência ou culpabilidade de alguém, quando os tribunais funcionam à velocidade do caracol e um bom advogado pode atrasar as decisões quase indefinidamente? Será nosso dever não termos uma opinião sobre a decisão de um colectivo de juízes, esquecendo todos os detalhes do processo que nos deram voltas ao estômago?