sexta-feira, maio 13

Aborto e hierarquia católica

A alteração à lei sobre o aborto em Portugal ficou, em minha opinião, decidida em Março de 2004. A publicação pela Conferência Episcopal Portuguesa do documento intitulado "Meditação sobre a vida" marcava uma posição de obstinação total perante a realidade, que levará inevitavelmente a uma maior liberalização do aborto, salvo se os grupos pró-aborto conseguirem um nível de irracionalidade que compita com o dos bispos portugueses.

A "Meditação sobre a vida" insistiu em equiparar o embrião a uma pessoa humana desde a concepção: penso que se trata de uma posição que a médio prazo levará a um beco sem saída, donde será preciso retroceder. Além disso ignorou completamente a relação da mãe com o próprio corpo durante a gravidez e ignorou o impacto sobre a opinião pública dos julgamentos que têm decorrido.

Mesmo admitindo uma posição radicalmente contra o aborto, uma leitura minimamente atenta da sociedade portuguesa deveria ter deixado claro que já só era possível "minimizar os danos". A ocasião era propícia (pois a direita estava no poder) e a proposta de Freitas do Amaral pareceu-me, nessa perspectiva, o melhor "negócio" possível: nem sequer descriminalizava o aborto mas, ao inverter o ónus da prova, permitiria acabar com quase todos os julgamentos.

Perante este quadro a Conferência Episcopal resolveu insistir em que só se devia "considerar, em sede de julgamento, eventuais circunstâncias atenuantes". Quer dizer, tudo devia ficar como estava, incluindo a exposição em julgamento das mulheres que abortaram (note-se o contraste com a prática de proteger da exposição pública os padres pedófilos).

A partir de um radicalismo destes, muitas pessoas moderadas, incluindo católicos, deixaram de poder contar com a hierarquia para um debate sereno com aqueles que defendiam o aborto livre a pedido da mulher. Dentro da Igreja saíram reforçados os grupos religiosos radicais anti-aborto e, como consequência natural neste contexto, houve padres que levaram a sério o radicalismo: foi o caso do Pe. Nuno Serras Pereira e é agora o caso do Pe. Domingos Oliveira. Estes padres limitaram-se a levar até às últimas consequências a posição expressa pelos bispos e provam, pelo seu excesso, a desadequação da "Meditação sobre a vida". O aborto será um mal mas não se pode fazer dele o mal absoluto, sob pena de se dizerem as barbaridades que disse o pároco de Lordelo do Ouro.

Agora que a maioria política mudou, andam as deputadas católicas do PS a tentar sem sucesso salvar uma posição análoga àquela que, há um ano, a Conferência Episcopal se dava ao luxo de desprezar e andam os movimentos anti-aborto a ser desacreditados por declarações desligadas da realidade.

9 comentários:

wind disse...

Bom post e é bom que se deixe de perseguir as mulheres por abortarem.

Anónimo disse...

A proposição afirmada na «Meditação sobre a Vida» - o embrião = a pessoa humana - é muito clarificadora, a mais de um título. A sua argumentação:
(i) É contrária à modificação liberalizadora da lei actual;
(ii) É contrária à solução contida na lei actual (distinção entre homicídio e aborto e despenalização deste em situações excepcionais);
(iii) E é contrária à solução contida na lei revogada pela lei actual (que já discriminava em termos punitivos a vida intra-uterina).
Os dois sacerdotes em causa fizeram uma leitura correcta daquela Meditação. Mas ainda é possível ir mais além. Que dizer da legítima defesa de terceiro? E do crime de omissão de auxílio (art. 200º CP)?
Quando as palavras deixam de significar o mesmo para todos, no mínimo cessa a comunicação; mas o conflito também é uma boa possibilidade.

Orlando disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Caro colega anonimo. Estava neste planeta quando se realizaram as últimas eleições? Depois falamos...

CA disse...

Obrigado wind. E obrigado pelo apoio, primeiro anonymous.

Palmira F. da Silva disse...

Excelente post :-)

Anónimo disse...

1st anonymous:
Caro 2nd anonymous:
Provavelmente estaremos de acordo quanto ao post de CA, aliás muito objectivo. Apenas pretendi sublinhar, desenvolvendo (e denunciando) até ao absurdo, o que me parece ser o fundo da questão e quais as consequências, de resto historicamente comprováveis, do tipo de tom e atitude adoptado pela hierarquia (a identificação embrião-pessoa, por ora, ainda é sobretudo retórica...). O sacrifício da liberdade em favor da (ou de uma?) verdade conduz inexoravelmente ao sacrifício de pessoas.

CA disse...

Obrigado, Palmira :-)

Anónimo disse...

Caro primeiro anonimo,
Estamos entendidos!
Acho que voces catolicos progressistas se deviam preocupar um pouco mais em falar para o povo...