quarta-feira, janeiro 25

Caridade (6): um conto científico

I'm sorry. Não posso aceitar o teu convite, não tenho a certeza de viver o suficiente para poder terminar o artigo. O Luís só percebeu as palavras do John quando finalmente reparou nos seus olhos cavados e baços.
Quando me despedi do Lino em Lisboa, tomei a liberdade de insistir com ele para que continuasse os seus trabalhos sobre pequenos divisores. Tenho a certeza que ele te pode ajudar a resolver o problema, Luís.
"O Lino? Depois de todas as humilhações que me fez passar durante o último ano? Nem pensar."
John percebeu que o Luís estava a ser dilacerado por algum conflito. Vocês em Lisboa não discutem matemática uns com os outros?
A farpa do John acertou na mouche. Mas nem isso o convencia. Mawhinsky resolveu recorrer aos grandes meios. Sabes que Arnold esteve a semana passada em Cambridge? Disse-me ao almoço que tinha dois alunos a trabalhar nesse problema. Se eu fosse a ti, despachava-me...
Uma pequena mentira, por uma boa causa. O John nem esperou pela resposta do Luís. Lino, will you join us? E encaminhou-se para o confortavel sofá ao pé da lareira.

A Matilde ensaboava as pernas. Que sensações estranhas tinham percorrido o seu corpo quando descobrira que o John vinha a Lisboa. Ir ao seminário daria muito nas vistas. Arrastou as duas amigas até ao refeitório dos professores. Ele viu-me! Como pode ignorar-me? Finalmente os seus olhos encontraram-se no café. Ela desviou os olhos daquele olhar enigmático. A semana que ela passou na cama dele fora um simples divertimento? Será que ela nunca o saberia? Afogara as mágoas no TóZé.

Aquele convite do Porto dera ao John o pretexto. Telefonou ao Lino e combinou uma passagem por Lisboa. Quem sabe, talvez pudesse entrever a Matilde. Uma última vez.
O John recebeu a noticia da sua doença durante um check-up de rotina, algumas semanas depois da estadia da Matilde em Cambridge. Acabou por esboçar um sorriso. Era a primeira vez que tinha desflorado uma aluna. Sabia agora que seria a última. Se fosse supersticioso, não poderia deixar de acreditar no castigo divino.
Quando viu a Matilde no restaurante, refugiou-se no Luís. Só a conversa com o Luís lhe permitiu evitar de correr para a Matilde e beijá-la. A conversa com o Luís e a vergonha daquela barriga de grávida que os malditos medicamentos lhe tinham feito nascer. Agarrou no Lino e fugiu para a gare do Oriente. Antes que a vergonha abrandasse.
Lá longe, o Lino e o Luís riam como dois miúdos a quem o Pai Natal tinha acabado de encher de presentes. Os comprimidos começavam a fazer efeito. Finalmente, um momento de paz. O sono aproximava-se e como ele a Matilde vinha mais uma vez envolvê-lo no longo beijo daquela manhã de Agosto.

11 comentários:

Orlando disse...

Este conto é baseado em duas histórias verdadeiras.

Orlando disse...

A história do John com o Luís apareceu nos Notices da American Mathematical Society. Um matemático famoso explica a um jovem como resolver o problema em que está a trabalhar. Após um momento de espanto, o jovem percebe que o raciocíno da estrela está completamente errado.
Furioso, persegue-o sem exito até ao comboio para lhe enfiar o erro pelas goelas abaixo.
Uma semana depois começa a ter ideias para resolver o problema e acaba por resolvê-lo completamente. Percebe muito mais tarde que:
- aquele raciocínio errado foi a sua fonte de inspiração decisiva.
- o matemático famoso sabia perfeitamente do erro no raciocínio. Sabia também que aquele erro "apontava na direcção correcta".

Orlando disse...

Pensava escrever um pequeno post com esta historia, para ilustrar a ideia do post sobre a caridade (intelectual).

Depois juntei-lhe a história da Matilde com o John.

Esta história foi-me contada pela propria Matilde.

Orlando disse...

A Matilde está casada e tem várias criancinhas.

Orlando disse...

PS: Tinha de matar o Professor que vai para a cama com a aluna...
Não havia outra hipotese. :)

lino disse...

Não concordo com este final. Tens que escrever um fim alternativo. :)

António Araújo disse...

"cut is the branch that might have grown straight(...)"

Se a memoria não me atraiçoa era mais ou menos assim no final do Fausto do Marlowe, outro terminat autor opus com retribuição moralista forçada ;)

Mas gostei :)

Sofia disse...

Estou sem palavras. :)

Anónimo disse...

Hum... esta matilde que se apaixona por tipos geniais pela sua inteligência matemática (deduzo eu), e que depois mata as comichões com o Tozé... rapariga complicada, ein.

Hugo

Anónimo disse...

Ah, e o Tozé pá, o que é que acontece a esse tipo? E quem é a Dona Laura?

Hugo

Orlando disse...

Rapariga muito complicada :)))