domingo, julho 15

Deuses

Os filósofos estendem o sentido das palavras até que estas passem a reter muito pouco do seu sentido original, chamando Deus a uma vaga abstracção que eles criaram para si próprios, apresentam-se como crentes perante o mundo, orgulhando-se até de terem atingido uma ideia mais pura e mais elevada de Deus, quando na verdade o seu Deus não é mais do que uma pálida e insubstancial sombra da poderosa personalidade que encontramos na doutrina religiosa.
Sigmund Freud

30 comentários:

Sofia disse...

Freud.

Anónimo disse...

Notemos a quantidade de termos "negativos" usados para descrever a actividade dos filósofos - «muito pouco», «vaga abstracção», «não é mais do que», «pálida e insubstancial sombra» -, enquanto que o ponto de vista da religião é descrito por termos fortemente positivos, como «poderosa personalidade».

Teria Freud algum "complexo" acerca do que os filósofos fazem?

Jaime
www.blog.jaimegaspar.com

Sofia disse...

Ele foi um, Jaime. Mas ligeiramente melhor do que os outros. Não é complexo. Complexo, só há um. O de Édipo. :)

Orlando disse...

Jaime,
não me parece que ele esteja a ser assim tâo positivo acerca da religião.
Ele limita-se a afirmar que o Deus dos filósofos pouco ou nada tem a ver como Deus da religião.
Eu acrescentaria que o Deus dos teologos também não tem em geral muito a ver com o Deus dos crentes.

Orlando disse...

Vejamos uma variante do argumento cosmologico, devido a Tomás de Aquino. Um argumento interessante para um Lógico:)

1. Todo o ser finito e contingente tem uma causa.
2. Nada finito e contingente pode causar-se a si proprio.
3. Uma cadeia causal não pode ter comprimento infinito.
4. Como tal deve existir uma primeira causa, dve haver algo que não é um efeito.

Esse algo é Deus.

Este Deus é o Deus dos filosofos. Não é o Deus de Abraão.

Anónimo disse...

E se a cadeia causal não for uma cadeia linear, mas uma cadeia circular? Então pode ser finita mas sem uma primeira causa. :-)

(Acho que temos de abdicar da anti-simetria para evitar que a cadeia se reduza a um único elemento.)

Jaime
www.blog.jaimegaspar.com

Anónimo disse...

Acabei de me lembrar de uma coisa: se toda a cadeira causal é finita, então é majorada, logo pelo Lema de Zorn existe um elemento maximal, que naturalmente é Deus. :-)

Jaime
www.blog.jaimegaspar.com

Anónimo disse...

E mais um convertido...
Glória ao Senhor!

Anónimo disse...

Prosseguindo o raciocínio, se existirem vários elementos maximais, então temos vários deuses.

Isto também se aplica ao argumento que ON mostrou: como cadeias diferentes podem ter diferentes primeiros elementos, então podem existir diferentes deuses.

Jaime
www.blog.jaimegaspar.com

Orlando disse...

O argumento é de Tomás de Aquino. Realmente ele esqueceu-se de provar que a causa prima tinha de ser única.

Alexandre Pierson disse...

É pá, o axioma da escolha enquanto argumento para a existência de Deus...muito bem.
E se o axioma da escolha, e consequentemente o lema de Zorn estiverem "misguided"? Há quem trabalhe sem eles e é muito divertido: não se consegue provar quase nada!

Orlando disse...

No caso de tudo ser finito, não é preciso axioma da escolha. E há outra formas de refutar o argumento.
O mais importante disto tudo é que realmente todos estes raciocínios constituem uma parte importante da pré historia da Lógica.

maga.pata.logika disse...

Mmmm... interessante!

Uma coisa que se esquecem é que Freud tinha uma coisa que era um ego fenomenal. Por vezes os egos impedem as pessoas de ver claramente.

Acho (mas tenho que verificar) que Freud era neurologista. Mas pode ser filósofo, como qualquer um de nós: não são as habilitações formais que fazem necessariamente um filósofo/pensador. Não é como ser engenheiro, arquitecto ou médico. Dito isto, chamava-se indevidamente ao Edgar Cardoso arquitecto quando ele era engenheiro civil. Mas não é o mesmo, porque a fronteira entre um e outro é mais ténue (digo eu que não sou nem uma coisa nem outra).

Um livro curioso é "Mais Platão menos Prozac" de um Lou Marinoff (não sei se é assim que se escreve). Como o título indica mais ou menos, o livro diz que há inquietações que se resolvem com Filosofia e não com anti-depressivos. E explora a terapia filosófica como panaceia universal para todos os males da alma.

Porque é que me desviei do tema Deus e Filosofia? Não desviei: o que está em causa é tomar a sua abordagem como única e inquestionável. Segundo o livro que falei, só a Filosofia é capaz de curar as pessoas: tem secções de ataque cerrado à Psicologia e Psiquiatria, que me irritaram solenemente porque ultrapassaram os limites do razoável! O que eu gostava de saber é como se trata um esquizofrénico com Platão ou Nietsche. Ora o livro não fala deles... que conveniente!

Com as palavras pode-se "fazer" muita coisa. Mesmo tentar unificar tudo. Mas na prática ou numa teoria mais atacada essa abordagem não resiste porque simplesmente... a realidade e a abstracção são complexas demais para serem simplesmente abarcadas por uma única mente e pensamento.

Há áreas que se tocam esporadicamente. Mas raramente há fagocitose de áreas do saber. A Filosofia nunca conterá a religião e a Fé. A religião também nunca conterá a Ciência. E a Filosofia nunca conterá a Ciência. Em bom português, cada macaco no seu galho. Deus está essencialmente na religião e a Filosofia só lhe toca, mas não a contém!

Orlando disse...

Cara Maga,

escrevi em tempos um post sobre a aplicação da filosofia na psicoterapia:

Nietzsche, Breuer and Freud,

baseado no romance de Irvin D. Yalom

Quando Nietzcshe chorou.

http://daprosa.blogspot.com/2006/06/nietzsche-breuer-and-freud.html

Yalom é um psicoterapeuta com uma vasta obra publicado sobre o assunto.

Outro romance dele que também
trata o mesmo assunto é

A cura de Schopenhauer.

Maria disse...
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Maria disse...

Maga,
o que Freud diz neste texto é que a filosofia tem por hábito distorcer a religião. Pelo menos o conceito de Deus. Está a meter a filosofia no seu galho.
Noutras ocasiões Freud é menos simpático para a religião.
Mas não aqui.

Maria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria disse...

Maga,
achas mesmo que a religião é uma área do saber?

maga.pata.logika disse...

Laura

Boa pergunta. Não sei se tenho a resposta certa (se é que isso existe).

Estou tentada a dizer que sim, porque é uma maneira sistemática de percepcionar a realidade e o nosso lugar no Universo, as interrogações mais antigas do homem pensante. De certo modo é uma filosofia, mas não é a Filosofia de que falava o Freud.

Pode ser uma abordagem dogmática, mas não deixa de ser uma filosofia de direito próprio. Mas É uma abordagem dogmática na sua essência (assume-se assim!) e não pretende ser científica (ao contrário do que os evolucionistas tentam demonstrar). Toca a Filosofia no sentido em que, passando o dogma, tem métodos idênticos. Claro que Deus não é discutível, pelo que logo aí se exclui como Filosofia: na Filosofia tudo é discutível. Inclusive a validade da discussão, como fez Freud.

Isto não tem nada que ver com concordar ou deixar de concordar com "a" religião (mesmo porque há muitas, mas têm pontos em comum).

Curiosamente, o que o Freud diz é um pouco isso: a Filosofia dos filósofos tentou pegar no Deus dos padres e rabinos, refiná-la e dar-lhe uma credibilidade e legitimidade filosófica, mas falhou (na opinião dele) porque o apequenaram. Mais: acha ele que o apequenara como a outras coisas, porque "estendem o sentido das palavras".

maga.pata.logika disse...

On

Sugestões interessantes de leitura, por acaso. Hei-de procurar os livros um dia destes.

Por falar em sugestões, espero que tenha alguém esteja a dar uso à máquina que tem lá em casa da sua mãe. Vá ver o meu blogue, que tem umas coisinhas novas de que estou particularmente orgulhosa.

Maria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria disse...

Maga,
a mim o que me interessa mais na citação do Freud é distinguir entre os dois Deuses. O dos crentes e o outro.
Também me parece que quando há dogmas não há saber. Um origami é feito segundo um certo conjunto de regras mas só porque funciona, será que esse conjunto de regras constiyuem um dogma? Se o origami não saisse bem, mudava-se o conjunto de regras. Assim quando se ensina um origami transmite-se conhecimento e não um dogma. Acho que dogma não é conhecimento. Que te parece:)

maga.pata.logika disse...

Laura

Quando há dogmas não há saber... bem, isso não será um pouco demais? O origami não é uma filosofia, mas uma arte. Aliás, muda a toda a hora. Não é comparável. Mas recomendo a todos, diga-se de passagem!!

Assumir-se que o pensamento livre é superior de algum modo ao pensamento dogmático é em si um outro dogma. Casos recentes de pós-modernismos (segundo o pouco que eu entendo do assunto, e é mesmo pouco) mostram como isto pode ser perigoso: querer ver tudo como subjectivo, a abstracção como superior ao conhecimento objectivo... leva por vezes ao disparate ou mesmo a pequenas-grandes tragédias!

O dogma diz muito sobre nós, dado que nos diz o que estamos preparados a aceitar, dentro da liberdade. Por exemplo, a ideia de um Criador superior pode ser só o reconhecimento de algo óbvio: o Homem não é o centro do Universo nem para lá caminha! Para isso criou uma força superior, que assume várias formas para várias culturas.

O dogma (errado objectivamente) de que tudo está ao alcance do nosso conhecimento e tudo é unificável diz que o Homem tem pretensões a... ser deus! Quando não passa de um macaco com pouco pêlo e com um cérebro grande demais e que nem sempre usa.

CA disse...

Também na religião há muitos deuses. Mesmo na Bíblia se discutem as características de Deus. Para um cristão, Deus é o Pai de Jesus Cristo.

Nesta perspectiva a religião não é uma forma de conhecimento mas sim uma forma de relacionamento, com Deus e com os outros.

Não seo se estou a entender bem o teorema de Godel mas, do que percebo, pode haver proposições verdadeiras num sistema axiomático que não podem ser deduzidas dos axiomas. Porque não poderia existir um Deus cuja existência não pudesse ser demonstrada racionalmente?

Isto não é uma razão para a existência de Deus.

Quanto às razões para a existência de Deus, que o On me pedia num post anterior:
- a existência do Universo, com todas as suas leis, é um indício ou uma razão (não um prova);
- a ideia de Deus chegou-me através do testemunho de muitas pessoas que apostaram nela as suas vidas;
- as pessoas que procuram viver a fidelidade ao amor que caracteriza Deus têm vidas que me parecem mais interessantes;
- vivo a minha vida procurando discernir nela uma relação pessoal com esse Deus; isso tem-me permitido uma vida que me faz mais feliz; espero que ao chegar ao balanço global da minha vida sinta que é nítida a presença desse Deus ao longo dessa vida.

Estou consciente de diversas explicações para as minhas razões que não incluem a existência de Deus. Mas essas explicações parecem-me razoavelmente insuficientes para afastar a possibilidade da existência de Deus.

Maria disse...

Maga,
nem disse que era superior, só disse que só se pode saber experimentando. Experimentar é o oposto de dogmar. Se tudo está ao nosso alcance ou não, não vou estabelecer dogmas sobre isso. Só vamos tentar saber o mais possível, e ver se o conseguimos ou não. O que é que tu dizes a alguém que te venha dizer que um certo tipo deorigami não se pode fazer?:)

Esses macacos de que falas são os homens, suponho.
Nós pertencemos a uma raça superior:)
Estás a ver, até eu acredito num dogma, como o CA.

Como diria a minha avó, muitas pessoas apostaram as suas vidas a defender o nazismo,o comunismo e outros ismos. Talvez com mais intensidade do que aquelas que defenderam a democracia. E que podemos daí concluir?

maga.pata.logika disse...

Laura

A Ciência é experimentação, mas a experimentação não é tudo. A Filosofia é a abstracção, mas a abstracção não é tudo. A Filosofia e a Ciência são o suficiente para um estilo de vida ateu ou mesmo agnóstico.

A religião é uma outra abordagem e não pode nem deve ser sujeita a experimentação. Não sobreviveria. Há um livro que não vou ler (também por ser enormesco) que é "a fórmula de Deus" em que o José Rodrigues dos Santos tenta provar a existência de Deus com a Ciência... mas que disparate! Não sei como o tenta, mas sei que não funciona nem nunca funcionará!

Sou religiosa "light", o que quer que isso queria dizer. Tenho ainda a Ciência e o pensar (não me atrevo a dizer Filosofia) na minha vida e não as cruzo mais que o estritamente necessário. Sobretudo não tento sobrepô-las.

Outra coisa: a religião, quando bem orientada e integrada saudavelmente na vida é um bom ponto de partida para uma vida e uma cidadania saudáveis. Claro que estou a falar de religiões modernas e não de coisas que envolvem sacrifícios rituais e divisão de pessoas em castas.

O origami não tem nada a ver: há coisas que são efectivamente impossíveis e prova-se essencialmente por não se conseguir fazer. Mas as possibilidades continuam a ser impossíveis. E depois há os limites: será origami só dobragens ou poder-se-á recorrer a tesouradas e colagens??

Anónimo disse...

Tesouradas e dobragens, nunca!
Aí está um dogma em que eu acredito.

Orlando disse...

CA,
o Deus dos filosofos de que fala Freud também é uma face do Deus cristão?
Ou é outra coisa?

Anónimo disse...

MAGA,
quando não se consegue fazer algo, só se prova que não se consegue fazer algo.
Provar que não se pode mesmo, é outra coisa:)

CA disse...

On

Penso que o Deus dos filósofos são tentativas de capturar, de conhecer, o Deus dos cristãos.

Mas isso deveria correr mais por conta e risco dos filósofos. Contudo os cristãos entusiasmaram-se bastante com esse apoio dos filósofos e o resultado tem vindo a revelar-se pouco construtivo, para não dizer desastroso.

Hoje a teologia católica, por exemplo, assenta ainda muito na filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino. Ora o que causa dificuldades e conduz a inúmeros disparates são as filosofias, não o essencial da mensagem cristã. Um certo entendimento dos dogmas é fruto desta influência filosófica, não se encontra no Evangelho nem mesmo na Bíblia.

Como católico espero que a teologia e a Igreja se libertem desta rigidez de conceitos filosóficos muito datados para que a frescura do Evangelho possa revelar-se nas estruturas da Igreja.