quarta-feira, abril 22

As Sombras do Senhor Neves

A seguir à segunda guerra um número crescente de famílias americanas viviam longe dos seus pais. Não tinham com quem conversar quando tinham alguma dúvida sobre como cuidar dos seus filhos. O Dr. Benjamin Spock publicou em 1946 Baby and Child Care (Meu Filho, Meu Tesouro). Este livro foi um dos maiores best-sellers de sempre. Distinguia-se pelo seu bom senso e pelo seu calor humano.
Muitos anos mais tarde os seus filhos vieram a público explicar como o seu pai fora sempre um homem frio e distante e como isso os marcara irreparavelmente para toda a vida. É trágico que tal tenha acontecido, mas isso não muda uma vírgula ao mais importante. A geração dos baby-boomers cresceu mais equilibrada e confiante do que as que a precederam em parte graças ao talento do Dr. Spock. O esforço de Benjamin para apresentar ao mundo a Persona do pediatra perfeito ajudou a criar uma Sombra sinistra, só conhecida dos que partilhavam o seu tecto.

Vem isto a propósito do artigo de João César das Neves citado no Jardim de Luz. Este senhor critica Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre, entre muitos outros ódios de estimação. Tal como com Frei Tomás, é melhor fazer como eles dizem, do que como eles fizeram. César das Neves dá a entender que a existências destas sombras na vida destes homens destroi a credibilidade das suas obras.
Quanto mais alto subimos maior a sombra que projectamos. Há que aceitá-la, admitir a sua existência sem vergonha e tentar integrá-la na nossa personalidade. Nada pior do que tentar pura e simplesmente reprimi-la e escondê-la debaixo do tapete. Não resulta. Cada pessoa tem a sua Sombra e só um pobre Diabo se lembraria de vir para os jornais apregoar o contrário.

César das Neves dificilmente alguma vez escreverá um artigo sobre o novo caso de pedofilia que ensombra a igreja católica da Irlanda. Neste caso a sombra não destroi a obra? Negar a existência desta sombra nada resolve...
O ritual da confissão católica pode ser um excelente meio para reconhecer as nossas sombras e integrá-las na personalidade. Aceitá-las como parte de nós próprios. Quantas vezes serve apenas para manter a ilusão de que as nossas sombras podem ser deitadas fora?

10 comentários:

MaDi disse...

Esse senhor é meu vizinho de cima :)

"Estes onze homens e uma mulher vivem totalmente autocentrados, usando escandalosa e vergonhosamente os outros para proveito próprio"

Acho que isso é provavelmente a biografia de qualquer ser humano.

Há uns que simplesmente fingem para si próprios que não é assim.

maria disse...

é mais um caso, ou são velhos casos? Mas nem que fosse só um único, não serve de nada fingir que se não vê.

Concordo com o teu último parágrafo. Serve muitas vezes para isso (a segunda parte). Acho que foi dos escândalos que mais me pertubaram como católica. Ver essa redução do sacramento.

Hugo disse...

Há uns tempos escrevi um post do mesmo género que este, mas... sobre o Cristiano Ronaldo. :P

http://dottoratoamilano.blogs.sapo.pt/107062.html

Acho que neste assunto as nossas posições convergem, on.

MaDi disse...

Vendo as coisas um pouco da maneira contrária.
Naquele filme sobre o Hitler, a Queda, mostra-se a sua faceta humana. Em que ele era efectivamente amigo das pessoas que estavam à sua volta e que de facto se preocupava com a sua família e seus entes queridos.
O que será melhor: ser um crápula para uma quantidade mínima de pessoas que está à sua volta e fazer coisas que irão mudar o pensamento da humanidade e de várias gerações seguintes ou ser muito bom para as pessoas que estão à sua volta e quase conseguir dizimar todo um povo?

Acho um bocado simples diabolizar os outros. Todos temos os nossos demónios e aposto que o Dr. Spock não era frio porque decidiu que devia ser frio com os filhos. Era frio porque como qualquer outro ser humano tem problemas em ser humano e lidar com coisas que de facto o afectam sentimentalmente.

on disse...

São novos, MC. E muitos...

on disse...

Hugo,
os casos são semelhantes, mas as conclusões são diferentes. Tu achas que o ser humano é inconsistente. Talvez subscrevas que todas as combinações são possíveis. Não há leis. Nada se pode prever. Nada se pode explicar.

Digamos que eu acredito em algo mais preciso. Algo parecido com o segundo princípio da Termodinamica. Ou com o equilibrio dos pratos de uma balança. Quando um sobe, o outro desce. Quando o nosso ego se move numa direcção, o nosso inconsciente move-se na direcção oposta, mantendo o equilíbrio.

Acredito que existem leis e a ciência é possível. É claro que a mente humana tem um nível de complexidade e de incerteza incomparavel com o de uma teoria matemática, mas mesmo assim o Damásio tem uma chance de dizer algo sobre o nosso comportamento.

on disse...

(continua)

on disse...

Tomemos o exemplo do Cristiano Ronaldo. Ele tem a idade de muitos estudantes universitários que vão fazendo um par de cadeiras por semestre, adiando o dia em que vão ter um emprego das nove às cinco.
Ele treina diariamente com concentração total. É examinado todas as semanas por milhões de pessoas. Não basta que não cometa erros. Não pode passar dois domingos sem mostrar uma ponta de génio. Enfrenta duas vezes por semana um estádio hostil, onde os adeptos dos adversários fazem tudo o que podem para o desconcentrar. Tem de resistir todos os dias à tentação de aceitar os convites de dúzias de mulheres atraentes de todas as idades. Sabe que qualqyer deslize que cometa será amplificado e comentado em todos os jornais do mundo.

O que é espantoso é a sua extroardinária capacidade para resistir a tudo isto. Todas as tropelias que comete são apenas a forma INDISPENSAVEL de equilibrar a situação patologica que vive todos os dias.
Não são defeitos aleatorios do seu caracter.

Orlando disse...

A tradição puritana do Homem das Neves começou em Paulo de Tarso. Depois de andar a perseguir cristãos uma boa parte da sua vida e da sua conversão espectacular na estrada de Damasco, o Paulo tentou ser tão bom quanto possível. Foi a sua forma de encontrar o equilíbrio. Depois do pendulo estar uma boa parte da sua vida num dos extremos, passou para o outro extremo. De certa forma, o Paulo não mudou nada. Passou a defender o cristianismo com a mesma ferocidade com que antes o atacava.

As soluções que Paulo de Tarso encontrou para os seus problemas não são úteis para a maior parte das pessoas, que tiveram percursos de vida completamente diferentes. Ele tinha certamente qualidades espantosas, não é esse o problema. Agostinho, bispo de Hippone, é um homem bastante mais sábio, ele sabia que

Agir é pecar. (CIdade de Deus?)

Da mesma forma que a construção de qualquer objecto material cria alguma forma de lixo, as tensões ligadas a qualquer actividade criativa ou a até a tentar ser bom aumentam o nosso lado negro inconsciente, a nossa Sombra.

Um "santo" não é alguém que é bom, é alguém que sabe que tem dentro de si o bem e o mal e sabe lidar com isso.

Hugo disse...

"Digamos que eu acredito em algo mais preciso. Algo parecido com o segundo princípio da Termodinamica. Ou com o equilibrio dos pratos de uma balança. Quando um sobe, o outro desce. Quando o nosso ego se move numa direcção, o nosso inconsciente move-se na direcção oposta, mantendo o equilíbrio."

Hmmm..... nunca tinha pensado nisto. Eu não conseguia nem tinha tentado atribuir nenhuma razão especial aos "deslizes" do cristiano, simplesmente pq não preciso de nenhuma explicação. A minha conclusão que o ser humano é inconsistente. Depois n procurei nenhuma explicação. E a tua até faz sentido. É a primeira vez que oiço alguém com essa explicação, normalmente na tv todos defendem o ideial de perfeição.