segunda-feira, maio 19

O sr. Fritzl e os seus vizinhos

Referi aqui um artigo de um austríaco sobre a sociedade austríaca, que deu depois origem a uma longa polémica no quase em português. Será que a cativeiro de Elisabeth Fritzl podia ter sido evitado se os seus vizinhos prestassem um pouco mais de atenção ao que se passava? A Helena acha que não. É difícil provar que alguém tinha razões para suspeitar de que se passava algo estranho e se calou. É pouco provavel que essa pessoa o admita.
Podemos no entanto exercitar o nosso bom senso. A Elisabeth foi violada durante vários anos pelo seu pai. Nunca se queixou a ninguém? Nunca emitiu sinais que a permitissem identificar como sendo uma criança em perigo? Fugiu de casa. Ninguém se perguntou porquê? Ninguém falou com ela sobre o assunto? A mãe é apresentada como sendo uma mulher que viveu toda a vida aterrorizada pelo marido. Sabe-se agora que na semana em que a neta se deslocou ao hospital estava de férias em Itália. Passava todos os anos uma semana de férias sem o marido no estrangeiro. Ao que parece a sra. Fritzl gozava de um grau de autonomia pouco compatível com a imagem que temos dela.
Fala-se muito contra a bisbilhotice. Ao mesmo tempo que as vendas das revistas cor de rosa continuam a aumentar. Não são só os dentistas que as compram. Melhor seria que todos nós assumamos o nosso lado negro. Eu pratico sistematicamente uma certa forma de bisbilhotice. Gosto de andar informado somo como evoluem os meus sobrinhos adolescentes e outras pessoas em posições de mais fragilidade. Não suspeito de nenhum caso de pedofilia mas conheço bem demais uma série de padrões que se estabeleceram em gerações anteriores e a sua tendência para se reproduzir. Uma vez por outra intervenho. Umas vezes de forma directa e relativamente agressiva, para aí uma vez de três em três anos. Outras de formas mais subtis. Arrisco-me a cometer erros imperdoaveis, a contrair responsabilidades pesadas, a criar inimizades inconvenientes. Acho que não tenho o direito de não o fazer. So far so good. Se existisse algum senhor Fritzl na minha família, acho que ele não se safava.

7 comentários:

Anónimo disse...

Voltando a esse artigo: o autor diz que há uma relação entre o modo como a sociedade austríaca não "digeriu" a experiência nazi e esta actual indiferença perante tudo o que possa incomodar. Convém lembrar que os nazis criaram uma personagem insuportável: a pessoa encarregada de espiar tudo o que se passava no prédio, e denunciar quaisquer movimentos anormais. Queremos voltar a esse tempo?
Não sei o que é pior: andarmos todos feitos bufos uns dos outros, ou continuarmos "naif", incapazes de imaginar que por trás de comportamentos relativamente estranhos de vizinhos possam estar a acontecer coisas horríveis.

Parece-me que o problema dos vizinhos do Fritzl, e de nós todos, é que é inimaginável que ele fosse capaz de encarcerar a sua própria filha numa cave sem luz do sol.
Mesmo que a Elisabeth tenha contado a alguém (provavelmente outra adolescente) que o pai abusava dela, quando "fugiu" essa pessoa terá pensado "ao menos assim está longe do pai". Como poderia imaginar que o pai a tinha encarcerado?
Depois do caso Fritzl, nunca mais olharemos com a mesma inocência para vizinhos que têm um mundo secreto na cave.
E no entanto, é difícil passar da observação fortuita à desconfiança e à denúncia. Já tive um vizinho assim: cara de poucos amigos, muito metido na cave, nunca deixava ver nem um palmo para dentro da sua casa. Era muito estranho - mas o que é que eu deveria fazer, de que é que deveria desconfiar? Devia dar o nome dele à polícia, para o caso de andarem à procura de algum desaparecido?

Uma outra questão é a do anacronismo: parece-me que há 25 anos todos se calavam sobre o abuso sexual de crianças. Silêncio das crianças, que sofriam em silêncio (e envergonhadas, convencidas que a culpa era delas, e aterradas com a possibilidade de, ao falar, destruírem a construção familiar), dos que suspeitavem e dos que sabiam. Hoje em dia, estamos todos muito mais sensíveis à questão, e dispostos a denunciar se testemunhamos uma situação de abuso.
(Mas ainda há poucos meses aconteceu na Baviera que uma mulher regressou à sua aldeia após décadas nos EUA e denunciou um homem que a tinha violado. Outras mulheres da mesma idade disseram o mesmo. E, por incrível que pareça, a aldeia virou-se contra elas, dizendo que estavam a dar cabo do bom nome da comunidade! O que mostra a pressão exercida sobre as testemunhas de há 20 ou 30 anos.)

Já uma vez tive certas suspeitas, e foi-me muito custoso. Uma criança da turma de um dos meus filhos dava sinais de ter sido vítima de assédio sexual. Falei com a professora sobre esses sintomas, sentindo que estava a correr um risco grave. Ela ficou muito calada (provalvemente sabia muito mais que eu, mas tinha de proteger a privacidade da criança). Eu fiquei sem saber se já tinha feito o suficiente, ou se devia denunciar (denunciar o quê, concretamente?!) a uma serviço SOS-criança. Confesso que fiquei muito aliviada quando, mais tarde, vi a miúda no consultório de uma psicóloga.
Mas também houve casos em que denúncias destas, que depois se revelaram sem fundamento, deram completamente cabo de uma família.

Curiosamente, a palavra que mais se repete neste comentário é "denunciar". Estamos como os americanos com o seu patriotic act: para lutar contra um mal, aceitamos outro.
Não há receitas nem certezas, vamos andando no fio da navalha.

Helena Araújo disse...

Tanta conversa, e não referi o principal: a responsabilidade e o papel dos familiares, tal como o ON descreve os seus, fundamentais para prevenir tragédias.

Orlando disse...

Então agora estamos de acordo?
Assim não tem graça nenhuma!

Helena Araújo disse...

Pois é, que chatice, peço desculpa!
;-)

Esqueci-me também de contar isto: na Alemanha (e talvez também na Áustria) existe nas caves uma divisão a que se chama "hobby room". É muito normal os homens desaparecerem durante horas na cave, a fazerem trabalhos em madeira, a consertar pequenos electrodomésticos, a fazer triagem de parafusos, coisas assim.

Anónimo disse...

mas não costumam dormir lá, pois não?
e gostam de mostrar à família as coisas que andam a fazer...

Helena Araújo disse...

Sei lá se mostram!
Muita gente tem os seus hobbies que não interessam a mais ninguém. Sobretudo a uma mulher que pelos vistos morre de medo do marido.
(ON, o facto de fazer férias sozinha não significa nada. O que por aqui mais há é mulheres que fazem uma semana de férias com as amigas, ou vão em excursões, sem o marido. E vice-versa - ele também não a levava para a Tailândia.)

Parece-me que um dos factores que tornou esta tragédia possível foi a falta de interesse: um casal a viver de costas um para o outro.
E faltou-lhes um tio ou primo como o ON, para observar o desenvolvimento dos filhos.

Alguém sabe se o Fritzl dormia lá?
Eu não sei. Mas duvido!
Se fosse eu o carcereiro, podem crer que não me atrevia a adormecer na presença dos meus prisioneiros. Sabe-se lá se eles não me partiam as pernas enquanto eu dormia, e me iam torturando até eu revelar o nome do código secreto para abrir as portas...

Anónimo disse...

Helena,
era vulgar o Fritzl dormir lá por baixo. Li isso várias vezes. O homem controlava bem as coisas. Havia a ameaça dos gases.
on