segunda-feira, maio 12

Manuela Ferreira Leite e os outros (2)

[...] esta semana houve a entrevista de Manuela Ferreira Leite a Judite de Sousa na RTP. Tudo foi bizarro no tratamento televisivo da entrevista, de tal maneira que todos se aperceberam de que havia qualquer coisa pouco habitual. Não me lembro de nenhuma [entrevista], nenhuma, que tivesse sido feita quase do princípio ao fim com um grande plano, um enorme plano do rosto de Manuela Ferreira Leite. Durante grande parte do tempo, o rosto nem cabia no ecrã, de tão próximo estava o olhar da câmara. Isto é objectivo; é só comparar as entrevistas.

Eu percebo muito bem a intenção do realizador. Não havia ruga, veia, movimento do olhar que não enchesse o ecrã, e o mais cruel dos planos escrutinava aquele rosto para lhe mostrar a fragilidade. É o mais violento dos olhares que a televisão é capaz, aquele que não permite que nada escape, que desapareça toda a reserva do corpo na sua parte mais exposta, a face. Aquele plano era todo um programa, tinha como objectivo mostrar uma mulher velha e cansada, com rugas, com o tempo na cara. Mostraria o mesmo em quase toda a gente, menos nos modelos de plástico que passam por homens e mulheres e que nasceram ontem com a pele limpa dos bebés. Mas não era toda a gente que estava ali, era Manuela Ferreira Leite. Aquele grande plano, excessivo e brutal, é todo um programa, insisto. Não há inocência.

Aquela face desprovida de qualquer defesa, exposta ao escrutínio quase incomodado dos espectadores, transmutou-se numa beleza muito especial, muito rara - a da verdade. É que debaixo daquela luz não há mentira que não se perceba, nem verdade que não se agigante.

Quando se lamenta muito a crise dos valores na nossa sociedade, aquela mulher frágil como todos nós, a quem chamam "de ferro", faz a melhor das pedagogias - a do exemplo.

Por tudo isto, agradeço aqui ao realizador da entrevista da RTP que não sei quem é. Fez a melhor das propagandas, mais rara, a mais difícil de fazer, a que não se encomenda, a que não se coreografa, a que não se imita. Fez da fragilidade uma força imensa. Não sei se chega para ganhar eleições no PSD, estou até mais convicto que chega mais facilmente para ganhar eleições no país, tão grande está o divórcio entre o partido e o país, mas estou de bem com esta maneira de ser. É o que mais faz falta.

Sem comentários: