segunda-feira, março 30

domingo, março 29

O Peregrino

Podiamos também chamar-lhe o vagabundo, ou o viajante. Algumas vezes faz sentido falar de uma travessia do deserto.
Paul Gaugin abandonou o seu lucrativo trabalho de compra e venda de acções na bolsa de Copenhaga, resolvendo voltar para França e dedicar-se à pintura, abandonando a mulher e os filhos. Tal mudança não o satisfez completamente, só tendo encontrado a sua verdadeira identidade quando se instalou no Tahiti. Um acto de coragem ou de cobardia? Gaugin ganhou o seu lugar na história da pintura e a sociedade perdoou-o, a família talvez não. Gaugin abraçou para toda a vida a figura do viajante. Toda a gente parte numa viagem alguma vez na vida. É a única maneira de encontrar a nossa identidade ou restabelecer o equilíbrio perdido. Mesmo que seja apenas uma viagem interior. Mesmo que seja só discordar de um amigo quando era tão facil dizer que sim, mas isso punha em causa a nossa identidade.
Algumas vezes dizem-nos que vivemos no paraíso, a nós parece-nos mais uma prisão. Quando comeu a maçã, Eva iniciou a viagem da humanidade. Teria alguma graça ter ficado no Paraíso?

quinta-feira, março 26

O Martir

Sacrificar uma semana por causa da doença de um filho é diferente de sacrificar uma carreira para tomar conta dele. No segundo caso, o sacrifício passa a fazer parte da identidade da pessoa, ela vive a história do martir. O verdadeiro martir dá sem esperar nada em troca. Nem sempre assim é. Algumas vezes espera-se em troca a pertença a um grupo ou algum tipo de recompensa futura. Muitas vezes não sabe receber tão bem como sabe dar.
O sacrifício era algo muito habitual na nossa cultura. A mulher sacrificava a possibilidade de se desenvolver enquanto pessoa pela harmonia do lar. Os homens sacrificariam a vida pelo seu país caso tal fosse necessário. Hoje em dia o sacrifício não é tão bem visto como já foi. Quando surge a ocasião em que seria natural alguma forma de sacrifício, muitos falhamos redondamente, por falta de modelos ou pura e simplesmente pela falta de hábito. Por outro lado ainda existem muitas pessoas, especialmente mulheres, que quando colocadas perante a opção entre o sacrifício e outra possível atitude, têm dificuldades em levar a sério a possibilidade de escolher a outra. Algumas vezes nem dão pela sua existência.

terça-feira, março 24

O Orfão

Acabamos por cair do Paraíso. Quem é expulso do Paraíso sente-se orfão. Quando um Inocente descobre que Deus não toma conta da sua vida, o Governo nos engana, as leis não são justas e os futebolistas ganham milhões, transforma-se num orfão. Alguns homens mais conservadores sentem-se orfãos quando descobrem que as suas mulheres têm desejos sexuais e ambições profissionais e não existem só para os servir. Algumas mulheres mais inseguras sentem-se orfãs quando descobrem que afinal os seus maridos não existem só para as proteger.
O orfão pode procurar consolo nas drogas, ou na esperança de ganhar a lotaria, ou em casar rico, ou na crença num Deus patriarcal que vai tomar conta dele, agora ou mais tarde, ou na reforma antecipada que lhe vai permitir voltar à infancia.
Um dia não vai ter alternativa. Terá de crescer.

domingo, março 22

O Inocente

E tomou o SENHOR Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,
Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.

O mundo e as outras pessoas existem para satisfazer o Inocente. Se sempre foi assim em criança, porque não continuará a ser? Quem abandona o Paraíso de livre vontade? São Inocentes o homem que nada faz em casa quando os dois voltam do trabalho e a mulher que não trabalha e passa o dia a gastar o dinheiro que o marido ganha no emprego. Para o Inocente uma pequena dor ou qualquer forma de sofrimento são um sinal de que algo de fundamentalmente errado está a acontecer.
Raramente o Inocente se pode manter inocente por muito tempo. A queda do Paraíso não vai demorar...
Mas ser Inocente é também saber ter esperança e confiar.

segunda-feira, março 16

domingo, março 15

sábado, março 14

Philosophy 101

A sala já estava cheia quando o Professor Heiddengstein entrou com uma jarra de vidro debaixo do braço. Era a primeira vez que leccionava o curso de introdução à filosofia. Por onde começaria? Sócrates ou Platão? Pouco original... Talvez Nietzche ou Spinoza. Afinal eram as suas duas grandes influências.
Heiddengstein levanta um balde escondido por detrás da secretária e começa a tirar de lá pedras que coloca cuidadosamente dentro da jarra. Quando acaba a tarefa fita pela primeira vez a audiência. Acham que a jarra está cheia?
O silêncio torna-se embaraçoso. Tantos professores na sala. Uma voz corajosa arrisca um sim. Vários ruidos permitem concluir que é essa a opinião da maioria. A secretária tapava outro balde. Este continha gravilha. Durante longos minutos o professor vai agitando a jarra de forma a que as pedras pequenas vão encontrando os espaços deixados livres pelas maiores.
Quando já não consegue colocar mais gravilha senta-se para recuperar as forças e repete a pergunta. Não espera pela resposta. O novo balde contem areia. Quando já não há mais espaço para a areia Heiddengstein deita a que sobrou noutro balde e abandona a sala por alguns momentos. Volta com o balde cheio de água, que despeja cuidadosamente para dentro da jarra.
Volta a fazer a pergunta. Alguém arrisca um sim. Heiddengstein tira da gaveta um saco cheio de açucar que começa a dissolver cuidadosamente na lama que enche a jarra.
A aula já era suposta ter terminado há longos minutos. Ninguém abandona a sala. Então, agora a jarra está cheia?
Várias pessoas aprenderam a lição: Não, é claro que não está cheia!
(continua)

quinta-feira, março 12

GM: thank you but no thank you?

A General Motors precisava de 2.000.0000.000 dolares para não ir à falência. Caso contrário todas as empresas dependentes da GM estariam condenadas. As consequências seriam catastróficas. De qualquer forma os executivos da GM continuavam a viajar nos jactos da companhia. Afinal, não são uns 1.000.000's de dolares que vão mudar alguma coisa.
Obama deixou claro que os executivos das companhias que tivessem ajuda do estado ficavam com os salários limitados a uns míseros 500.000 dolares por ano. Uns dias depois, parece que os executivos da GM já não precisam assim tanto do dinheiro. Que conclusões deveríamos tirar deste facto?

domingo, março 8

Memes

A selecção dos genes produziu um mamífero a partir de organismos celulares. Richard Dawkins introduziu em O gene egoista a noção de meme. A selecção dos memes produz uma religião complexa a partir de algumas crenças básicas?
Um meme é um elemento de cultura, um simbolo ou uma pratica que não se pode dividir em elemento do mesmo tipo mais pequenos e que se transmite de uma pessoa para outra através da fala, de gestos ou outros fenómenos imitaveis. São exemplos de memes uma anedota, uma maneira de fazer o nó da gravata, um novo passo de dança. É este o processo de transmissão dos memes. Os memes estão sujeitos à selecção natural. Só as anedotas verdadeiramente engraçadas são repetidas. As melhores atravessam gerações e continentes, sofrem mutações, etc. Um novo estilo de música é um agregado de memes. Alguns têm a ver com acordes musicais, outros com passos de dança, outros com roupas, estilos de vida, etc. Esse estilo criou-se por selecção natural, mesclando memes de vários estilos de música e doutras proveniencias.
A memetica (o estudo dos memes e da sua evolução) não tem ainda um estatuto científico bem definido. Mas algumas das suas construções são interessantes. Dawkins está especialmente interessado em aplicá-la ao estudo da religião. Um dos aspectos interessantes da evolução das religiões é o facto de nascerem várias por ano. É assim mais fácil estudar a criação de uma religião do que a criação de uma espécie.
Dawkins argumenta que nem é preciso que uma religião tenha um efeito benéfico sobre os seus praticantes, basta apenas que os seus memes sejam especialmente bem adaptados à luta dos memes para a reprodução.
Acho que não estou completamente de acordo com as ideias de Dawkins. Uma teoria científica resulta de uma luta pela sobrevivência de memes. Se reduzimos tudo a uma luta de memes, caímos nas teorias pos-modernas que reduzem a ciência a uma moda. Convem tentar perceber porque é que um meme é mais resistente do que outro.
Analisemos um meme: ter fé é uma riqueza espiritual. As religiões com este meme sobrevivem melhor do que as outras num mundo onde cada vez mais tudo é posto em causa. Uma religião assenta num conjunto de crenças. Se o crente acreditar que a crença tem um valor em si propria, é menos provavel que as ponha em causa.
Que se quer dizer então quando se fala no valor da fé? Que valor é esse? O que é que isso realmente significa?

terça-feira, março 3

Que fez correr Bernard Madoff?

Chamar porco capitalista a Bernard Madoff não explica grande coisa. Os porcos capitalistas normalmente sabem fazer as coisas e safar-se. As probabilidades de ele o conseguir eram limitadas, mesmo que não tivesse surgido esta crise. O homem não era assim tão estúpido. Começou do nada, subiu a pulso. Não é facil fazê-lo e não chega estar disposto a vender a alma ao diabo. Que leva alguém a ter um comportamento tão irracional?
Estamos interessados em criar condições para que esta crise não se possa repetir. São precisas novas leis, são precisas novas instituições. Que tal tentar também perceber o que se passou na cabeça do homem? Durante vinte anos Madoff lutou para sobreviver, para comprar o primeiro Caddilac, o primeiro executive jet. A certa altura já não sabia fazer mais nada. Quando algo dentro dele o puxava noutra direcção, rumo a um equilíbrio, não sabia como lidar com isso. Afinal todos os seus conhecidos estavam na mesma situação. Como calar então a voz que o atormentava? Comprar mais um carro, uma ilha no Pacífico, whatever. A vozinha voltava. Como fazê-la calar? Duplicando a conta bancária, triplicando-a? Não havia outro caminho. Milhares de Madoff's procuram todos os dias calar os seus demónios. Correndo qualquer risco.
Já temos milhares de boas leis, não são elas que nos vão livrar dos Madoff. Um sociedade só se consegue livrar dos Madoff's no dia em que criar condições para que a maioria dos seus membros tenha um Sol para ajudar.

domingo, março 1

Ajudar o Sol


Os indios Pueblo vivem naquilo a que hoje chamamos Novo México e Arizona. Resistiram mais do que muitas outras tribos ao contacto com a nossa civilização, evitando a destruição de todas as suas referências e a queda no alcoolismo. Para isso contribuiu bastante o facto de manterem a sua religião tão secreta quanto possível. Quando o psicanalista Carl Jung os visitou conseguiu ser objecto de algumas confidências que ajudaram a compreender melhor a sua psicologia. Só os rituais realizados pelos pueblos permitiam que o Sol continuasse a levantar-se todos os dias. Não o faziam apenas em proveito próprio mas tendo em vista o bem de toda a humanidade. A crença ingénua neste mito permitiu a estas pessoas manter as sua auto-estima intacta durante mais umas décadas.
Vale a pena acreditar nesta ilusão? Claro que sim, se formos capazes. Durante grande parte das nossas vidas podemos esquecer que a nossa personalidade é apenas a ponta de um iceberg que se eleva do nosso inconsciente. Estamos demasiado ocupados com as nossas carreiras profissionais, com a criação dos nossos filhos. É facil ignorar outras coisas. Ou parece. Na verdade não sobra tempo ou energia. Quando se dobra os quarenta começa-se a pagar um preço por esse esquecimento, embora seja sempre possível prolongá-lo por mais uns tempos. É a altura para relembrar caminhos que começamos a percorrer na adolescência e logo abandonámos. Li estas coisas nos livros, sentia-as, agora começo a vê-las surgir à superfície na vida dos meus amigos.
Várias coisas nos separam dos pueblos. A luz eléctrica, que nos permite manter à noite o ritmo frenético do dia, tornando mais dificil manter o hábito de restabelecer todas as noites o equilíbrio perdido durante o dia. A televisão, o ópio do povo. A nossa crescente sofisticação, que não permite a muitos de nós aceitar o primeiro mito que nos propõem. A pobreza da nossa ignorância.
Se em certas épocas da vida o inconsciente nos bate mais à porta, verdade é que tal acontece todos os dias. Alguns mitos classicos sobreviveram o passar dos tempos. São os nossos últimos instrumentos para manter esse equilíbrio. O amor romantico é um deles, representado em mil lendas, em metade dos filmes e em todas as telenovelas. A sua importância inflaciona cada vez que mais um mito cai. Não se pode esperar que chegue para todas as encomendas. É por isso que a culpa é do outro. As relações amorosas cada vez são mais instaveis porque se lhes pede que por si só mantenham todos os nossos equilíbrios. Obviamente, tal não é possível.
Outro mito é o da eterna juventude. Não sobram muitos mais. Um edifício em equilíbrio instável. Salve-se quem puder.