segunda-feira, julho 4

Más notícias para a Europa

"If people had understood how patents would be granted when most of today's ideas were invented and had taken out patents, the industry would be at a complete standstill today. The solution to this is patent exchanges with large companies and patenting as much as we can."-Bill Gates, 1991

Enquanto (segundo as minhas fontes no mundo dos tele-espectantes) os meios de comunicação nos continuam a distrair com não-notícias, algo de grave está prestes a consumar-se na Europa. Na próxima quarta-feira, e a menos de um pequeno milagre de última hora, arriscamo-nos a ser presenteados pela Comissão Europeia (contra a vontade do parlamento Europeu e da maioria dos profissionais de IT europeus) com a instituição de um regime de patentes de Software na Europa - US style! Se assim for, será o fim de uma era no campo da criação de software - o fim da era do "software de autor", e, consequentemente, o fim da inovação rápida no campo.

Em tempos dos quais ainda me recordo, a indústria do Software era um dos últimos redutos técnicos do indivíduo. As grandes inovações nesse campo provinham de indivíduos ou de pequenos grupos que trabalhavam em pequenas empresas ou nas suas casas, ou mesmo, proverbialmente, nos seus quartos em casa dos pais. Continuou a ser mais ou menos assim mesmo passada a era heróica. Mesmo na era da Microsoft muitas vezes as inovações eram compradas (ou roubadas) a estes indivíduos criativos. As inovações trazidas pelos monólitos empresariais dos quais Microsoft é bom exemplo não têm sido mais do que evolucionárias e tímidas. Veja-se a demora da Microsoft em compreender a importância da Internet. Mais recentemente, veja-se a resistência aos polémicos e verdadeiramente inovadores P2P ou Voice-over-IP.

Para alívio de muitos, estes dias de inovação “irresponsável” podem estar contados. Nos últimos anos os grandes grupos têm corrido a patentear, nos USA, todo o tipo de "inovação" trivial. Estas patentes incluem absurdos como o famoso método “1-Click” de Jeff Bezos (o patrão da Amazon) ou o "duplo click" da Microsoft de Bill Gates e uma infinidade de palhaçadas semelhantes. Trata-se de um jogo de cadeiras. O que é preciso é uma grande agressividade e rapidez para se ser o primeiro a sentar-se em cima de mais uma patente trivial. Isto requer falta de vergonha na cara e um exército de advogados mesquinhos a trabalhar nisso todo o dia. Creativity has nothing to do with it. Estas patentes são aceites porque a instituição que controla a sua atribuição 1) é incompetente, 2) recebe incentivos/pressões no sentido de conceder grande número de patentes e 3) porque a própria legislação o incentiva.

Quem lucra com isto? A maior parte destas patentes nunca são utilizadas. São tão gerais e absurdas que não há quem não esteja a infringir dezenas delas ao construir o mais simples programa. Os domínios intersectam-se e as grandes empresas estão sempre a invadir implicitamente os domínios umas das outras. O arsenal de patentes de uma corporação em boa forma serve portanto o propósito de "aniquilação mútua assegurada" em relação aos seus grandes competidores. É uma arma defensiva. Mas, usada contra indivíduos ou empresas pequena, é uma arma de ataque.

De facto, uma pequena empresa ou um indivíduo que de alguma forma desafie demasiado um dos grandes do software pode hoje em dia ser rapidamente eliminado ou assimilado. Um dia recebe uma oferta que não pode recusar, à melhor maneira da Cosa Nostra. Pode ser comprado a bem, fazendo uns cobres rápidos e perdendo o controle daquilo que construiu, ou pode ser afundado debaixo de uma torrente de processos legais, que não pode combater devido aos custos do processo, mesmo nos casos em que uma vitória fosse possível. Isto é particularmente perigoso no caso do Software Livre, e no caso de inovações polémicas como alguns programas p2p, que podem ser simplesmente eliminadas. Se podemos imaginar que um grande projecto como o Linux seja defendido com unhas e dentes, não é claro que projectos menores mas muito importantes consigam os fundos necessários para o fazer, ou que os seus autores tenham a motivação necessária para suportar o sacrifício de tempo e dinheiro a defender criações muitas vezes essencialmente altruistas ou lúdicas.

O facto desta insanidade do abuso das patentes não ser universal mantinha estas grandes empresas sob controlo. Não convinha até agora apertar demasiado o cerco pois as vitimas podiam simplesmente fugir para sítios mais seguros, como a Europa, causando um êxodo dos melhores programadores. Mais importante, não convinha fazê-lo para não assustar os Europeus, antes de os colocar debaixo das mesmas regras. Essa restrição poderá cair na próxima quarta-feira se o Parlamento Europeu não conseguir travar a proposta da Comissão. A história de como esta proposta chegou tão longe é em si própria um atentado à democracia na União Europeia, e tão grave talvez como a própria lei de patentes.

Se este regime de patentes se tornar universal, e se as empresas americanas conseguirem estender as suas patentes presentes à Europa, o que arriscamos não é apenas o alastrar à Europa do mesmo género de caos legal que contamina hoje a IT nos Estados Unidos. O que se passará será um piorar da situação tanto nos US como na Europa. Sem a existência de um refúgio Europeu, será o cair definitivo das luvas brancas. Será a caça aberta à inovação individual, e o cair da programação no “profissionalismo” mais rasteiro – passamos a ter meia dúzia de gigantes que controlam tudo, e os profissionais do campo passam a ser todos do género Dilbertiano, adequadamente “9 to 5” (em tudo menos nos horários), escravos engravatados, empregados de caixa do MacDonalds ou do Jumbo, (mas a um nível intelectual ligeiramente mais alto), sempre a trabalhar nos projectos dos outros em vez dos seus, aborrecidos de morte, à espera de mais um peixinho como uma boa foca amestrada. Quem perde é a criatividade individual, que não sobrevive em aquários, e consequentemente o progresso, e consequentemente todos nós.

Não esperem que alguma grande mudança aconteça. Nada será noticiado. O problema é precisamente que, como dizia Bill Gates na citação com que comecei (nem sob tortura se poderia arranjar melhor), as coisas vão mudar cada vez menos…

Muitos projectos desaparecerão. Muitos mais não serão sequer iniciados, por medo das consequências. O pior de tudo é que não chegaremos sequer a perceber o que estamos a perder.

8 comentários:

António Araújo disse...

O seguinte artigo, para quem não está ao corrente do que se passou nesta charada de corrupção abismal, dá uma ideia além disso da nossa contribuição nacional para este sórdido descalabro:

O Cherne ataca!

Esta parte é deliciosa:


Florian Mueller(...)condemned the Commission's decision in the strongest terms: "A wannabe Napoleon who heads the Commission and a Microsoft puppet that runs the DG (directorate general) in charge have decided to negate democracy.

Broken M disse...

Omwo,
As patentes de software nem sequer funcionam bem nos Estados Unidos.
Existem sempre formas de dar a volta ao processo.
Talvez nem seja assim tão mau, a dificuldade cria o engenho e pode ser que novas formas de software surjam.

António Araújo disse...

MaDi,

neste momento a maior parte do tempo dos programadores é já gasta a re-implementar a roda de forma a evitar as patentes. Isto não é produtivo. O engenho fica esmagado debaixo do trabalho de escravo. Mais, as patentes e copyright são usadas como armas de arremesso mesmo quando não se aplicam. Isto implica custos enormes com departamentos de advocacia. Isto está a destruir a IT nos US e em breve fará o mesmo na Europa.

Mais fácil do que aguçar o engenho a tal ponto será fugir para onde as novas oportunidades se façam ver...Se a China for esperta, por exemplo...

É isso que queremos?

Eu preferia que fosse a Europa a tornar-se o safe haven do IT, não a China...eu vivo aqui, é natural :)

Broken M disse...

Pois.
Infelizmente acho que vamos ser mesmo dominados pela China, em todos os campos. São metade do mundo a apostar em todas as áreas.

Orlando disse...

Calma Madi, o Japão também parecia que ia engolir o mundo. O problema é sério mas os outros também tém o seus problemas para resolver. os da China ainda hão-de vir ao de cima.

Broken M disse...

On,
espero que tenhas razão...

António Araújo disse...

Eu prefiro pensar em como vamos resolver os nossos...o erro de estarmos a contar com os problemas da China é que isso so trata do atraso relativo. E o atraso absoluto? Se todos, inclusive os chineses, tomamos as opcoes erradas, entao o progresso tecnologico é atrasado uniformemente. Nao sofremos então de problemas ao nivel competitivo. Continuamos a ser os do pelotão da frente, mas é o pelotão dos coxos.
Para isso prefiro ver os chineses a avançar, e mudo eu de pouso. Eu gostava de ver a tecnologia a progredir a um bom ritmo, o nosso mundo precisa disso, e a mim, pessoalmente, agrada-me...

Orlando disse...

Por outro lado, a China foi civilização mais avançada deste planeta durante a maior parte destes três milénios. Os últimos quinhentos anos foram um pequeno interregno. A democracia é uma flor muito frágil. A civilização grega, que justamente ocupa um espaço tão grande nos nossos compêndios de história, é um breve instante da história da humanidade, protagonizado por meia dúzia de famílias.