quinta-feira, maio 28

As aventuras de Psyche 2

Psyche está maravilhada com o seu novo destino. Eros a visita-a todas as noites, invisível. Ela descobre com alegria que ficou grávida. Eros diz-lhe que pode fazer tudo aquilo que desejar naquele paraíso, desde que lhe prometa não lhe fazer perguntas nem tentar vê-lo. Feliz perante a inesperada reviravolta do seu destino, Psyche aceita estas regras.
As irmãs de Psyche descobrem o que lhe aconteceu. A sua inveja é sem limites. Conseguem contactá-la. Eros avisa-a: elas vão tentar corrompê-la com intrigas. Se ela cumprir a sua promessa, dará à luz um Deus. Caso contrário, dará à luz uma mortal. Além disso, tudo acabará entre eles. Psyche reafirma as suas promessas.
As irmãs voltam a insistir. Não será o marido dela uma serpente? Não irá ela comer o próprio filho quando este nascer? Psyche arranja uma lamparina e a mais afiada das facas. A meio da noite acende a lamparina e empunha a faca enquanto descobre o lençol que tapava Eros. Maravilhada pela sua beleza e envergonhada por ter ter cumprido a promessa, Psyche recua, ferindo-se numa das flechas de Eros. Fica ainda mais apaixonada, se tal é possível. É então que derrama o óleo quente da lamparina sobre o ombro direito de Eros, que voa para longe. Ela persegue-o. No momento em que o perde de vista repara que já não se encontra no Vale do Paraíso. Não consegue encontrar o caminho de volta.

segunda-feira, maio 25

As aventuras de Psyche 1

Algures num reino muito distante uma rainha deu à luz a sua terceira princesa. Os ventos espalharam pela terra o quanto era impossível explicar por palavras a beleza, a inocência e a virginalidade de Psyche. Dizia-se até que um dia ela acabaria por destronar a deusa Afrodite no coração de todos os homens.
As qualidades que levavam os homens a venerá-la acabavam também por os intimidar. A idade do casamento aproximava-se e nenhum pretendente surgia. O rei achou por bem consultar um oráculo. Invejosa e vingativa, Afrodite levou o oráculo a determinar que só a Morte poderia desposar Psyche. Ela deveria ser deveria ser acorrentada a uma rocha no topo da mais alta montanha do reino, onde ficaria à mercê da mais horrível das criaturas.
Ninguém se atrevia a não respeitar a decisão do oráculo. Afrodite não se deu por satisfeita. Ordenou ao seu filho Eros que atingisse Psyche com uma das suas flechas momentos antes do monstro a despedaçar. A sua vingança só seria completa se a virgem se entregasse ao monstro. Quando preparava a flecha, Eros feriu-se nela. Nem ele próprio escapa à sua magia. Apaixonado por Psyche, Eros pede ao seu amigo, o Vento de Oeste, que a liberte e a leve para o Vale do Paraíso.
continua

segunda-feira, maio 18

Mais uns quantos estereótipos

Podemos assistir ao longo dos tempos a um "conflito dialéctico" entre as posições políticas mais conservadoras e as mais progressistas. Parece-me claro que ninguém tem propriamente razão. A situação tem evoluído de formas por vezes bem inesperadas. Quando escrevi este post comparava as oposições direita/esquerda e crentes/ateus. Neste segundo caso não conseguia imaginar como é que a razão podia ser de alguma forma partilhada pelos dois lados. Era essa a ideia principal que queria exprimir. O post foi um flop. Quando a Madi apareceu a comentar, o que não fazia há muito tempo, senti-me na obrigação de dizer que

não se nota nada mas isto ( o blog) vai avançando. É preciso olhar com muita atenção.

A verdade é que estávamos a ter mais uma estúpida guerra crentes/descrentes. Vamos lá a ver se a perspectiva que se segue muda alguma coisa. Pelo menos não agrada gregos ou a troianos, o que já não é mau.

Digamos que existem pelo menos cinco níveis de consciência humana.

1. Não temos uma consciência clara da fronteira entre nós e o mundo que nos rodeia. Uma criança de colo não distingue claramente onde é que ela acaba e a sua mãe começa. Todos nós podemos ter recaídas a este nível. Quantas pessoas ficam doentes quando o seu carro tem um problema ou o seu clube perde um jogo.

2. Passamos a diferenciar as nossas percepções daquilo que percepcionamos. Deixamos de nos projectar sobre tudo o que nos rodeia. Passamos a projectar partes de nós sobre algumas pessoas que nos rodeiam. Uma criança acha que a mãe sabe tudo e pode fazer milagres, que o pai tudo pode fazer e é o homem mais forte do mundo. Na adolescência essas projecções passam a recair sobre os amigos mais velhos e as estrelas rock. Os pais passam a não saber nada de nada. Os adultos voltam a realizar este tipo de projecções sempre que se apaixonam.

3. Nesta fase a omnipotência e a omnisciência já não são projectadas sobre pessoas mas sobre entidades abstractas (princípios, símbolos ou ensinamentos) ou instituições: Deus, o Destino, a Verdade. Torna-se possível o pensamento teológico e filosófico. Nas formas mais primitivas deste nível Deus encarna ainda as funções dos pais, sendo-lhes atribuído o poder de punir ou recompensar as pessoas de forma antropomórfica.
Nesta fase deixamos de nos guiar ao sabor da emoção do momento e da empatia inconsciente, passando a seguir regras e valores. Passamos a fazer aquilo que achamos correcto do ponto de vista ecológico não porque ficamos doentes de raiva quando testemunhamos a destruição da natureza mas devido a um imperativo moral que faz parte de um conjunto de valores razoavelmente coerente.

4. Dá-se a extinção radical das projecções. Deixa de existir um sentido a priori na vida. Deixa-se de acreditar na imortalidade. Dá-se um passo em frente no sentido da objectividade. Funciona? passa a ser a questão fundamental. Vê-se a relatividade dos princípios em que se acredita. Os valores pessoais são expressos em termos de talvez, não tenho a certeza. O ateísmo pode ou não ser completamente assumido.
O estádio 4 é altamente perigoso. Aquilo que se ganhou em clareza nem sempre é compensado por aquilo que se perdeu em significado. Muitas pessoas conseguem viver lidar com este estádio de consciência, mantendo uma real ou aparente estabilidade. Outras acabam por regredir para estádios mais primitivos ou passar por neuroses graves. Uma sociedade onde uma boa parte da elite está no nível quatro está condenada a passar por dificuldades graves. Estas pessoas acabam por de alguma forma minar a crença das restantes pessoas, sem lhes apresentar alternativas que lhes sirvam.

5. Que fazer quando nos apercebemos dos problemas criados pelo nível quatro? Que tal uma revolução coperniciana? Tal como a Terra não é o centro do mundo, talvez o Ego não seja o centro da nossa personalidade. Talvez seja apenas a ponte de um grande iceberg mergulhado no nosso inconsciente. Mergulhando nesse oceano, talvez encontremos algo que dê um significado às nossas vidas. Talvez até seja algo parecido com aquilo que muitas religiões afirmam. E também bastante diferente.

sexta-feira, maio 1

Brunello

Depois de outro troço de estrada, ouvimos ruídos, e numa curva aparece um grupo agitado de monges e servos. Um deles veio ao nosso encontro com grande urbanidade:
- Bem-vindo senhor, e não vos admireis se imagino quem sois, porque fomos advertidos da vossa visita. Eu sou o despenseiro. E se vós sois, como creio, frei Guilherme de Baskerville, o abade deve ser avisado.
Tu, sobe a avisar que o nosso visitante está prestes a entrar a cerca!

- Agradeço-vos, senhor despenseiro - respondeu cordialmente o meu mestre - e tanto mais aprecio a cortesia quanto para em saudar haveis interrompido a perseguição. Mas não temais, o cavalo passou por aqui e dirigiu-se para o carreiro da direita. Não poderá ir muito longe, porque chegando ao depósito de estrume terá de parar. É demasiado inteligente para se lançar pelo terreno íngreme.

- Quando o haveis visto? - perguntou o despenseiro.

- Não o vimos de modo algum, mas se procurais Brunello, o animal não pode estar senão onde eu disse.

O despenseiro hesitou, fitou Guilherme, depois o caminho e perguntou:
- Brunello, como sabeis?

- Vamos - disse Guilherme - é evidente que andais à procura de Brunello, o cavalo preferido do Abade,o melhor galopador da vossa estrebaria, de pelo negro, cinco pés de altura, cauda majestosa, casco pequeno e redondo mas de galope bem regular; cabeça miúda, orelhas finas mas olhos grandes. Foi para a direita, digo-vos, e apressai-vos, em todo o caso.

O despenseiro teve um momento de hesitação, depois fez um sinal aos seus e lançou-se pelo caminho da direita, enquanto os nossos machos continuavam a subir. Quando estava para interrogar Guilherme, porque me roía a curiosidade, ele fez-me sinal para esperar: e, de facto, poucos minutos depois ouvimos gritos de júbilo, e na curva do caminho reapareceram os monges e servos trazendo o cavalo pelo freio. Passaram ao nosso lado, continuando a olhar-nos algo atónitos, e precederam-nos em direcção à abadia. Creio mesmo que Guilherme afrouxava o passo à sua mula para lhes permitir contar o que tinha sucedido.

- E agora dizei-me - por fim não soube conter-me - como fizeste para saber?

- Meu bom Adso - disse o mestre. - Em toda a viagem te tenho ensinado a reconhecer os traços com que o mundo nos fala como um grande livro. Quase me envergonho de te dizer aquilo que deverias saber. No trívio, sobre a neve ainda fresca, desenhavam-se com muita clareza as pegadas dos cascos de um cavalo que apontava para um carreiro à nossa esquerda. A bela e igual distância uns dos outros aqueles sinais diziam que o casco era pequeno e redondo e o galope de grande regularidade... de modo que daí deduzi a natureza do cavalo e o facto de ele não correr desordenadamente como faz um animal irritado. Ali, onde os pinheiros formavam como que um tecto natural, alguns ramos tinham sido quebrados de fresco justamente à altura de cinco pés. Um dos silvados de amoras, por onde o animal deve ter andado para meter pelo caminho à direita, conservava ainda entre os espinhos belas crinas negras...

- Sim - disse -, mas a cabeça pequena, as orelhas aguçadas, os olhos grandes...

- Não sei se os tem mas decerto os monges o crêem firmemente. Dizia Isidoro de Sevilha que a beleza de uma animal tal exige. Se o cavalo não fosse o melhor da estrebaria, não se explicava porque a persegui-lo não foram só os moços, mas se incomodou o próprio despenseiro. E um monge que considera um cavalo excelente não pode deixar de o ver como as auctoritates lho descreveram, especialmente se - e aqui sorriu com malícia - é um douto beneditino...

- Está bem - disse - mas porquê Brunello?

- Que o Espírito Santo te ponha miolos na cabeça, meu filho! Que outro nome lhe terias dado se o grande Buridano, que vai ser reitor em Paris, tendo de falar de um cavalo, não encontrou nome mais natural?