quinta-feira, junho 16

Revisitemos então o Código da Vinci...


O Codigo da Vinci é um livro muito agradavel. Lê-se de um folego. Inventa umas teorias absolutamente deliciosas sem sentido absolutamente nenhum. Nada para levar a sério. Ao fim deste tempo todo ainda há pessoas que discutem o assunto. Porquê?

Uma das possíveis razões seria a afirmação feita no último paragrafo do livro antes do Prólogo: todas as descrições de obras de arte, edifícios, documentos e rituais secretos feitos neste romance são exactos.
Convem lembrar que Humberto Eco afirma que o manuscrito do Nome da Rosa foi escrito por um certo Abade Vallet que por sua vez reproduz uma manuscrito do século catorze encontrado no mosteiro de Melk. Estas frases aparecem só para criar um clima que ajude a dar verosimilhança à historia.
Ninguém levou a sério Humberto Eco. Mas levam a sério as afirmações de Dan Brown. Como é que este senhor ganhou tanta credibilidade? Paulo Coelho vende milhões, diz coisas bem estranhas e nunca teve direito a publicidade paga pela igreja.

A última ceia é um quadro muito estranho, não é? Dan Brown encontra uns factos interessantes que dão que pensar. Faz bem o seu trabalho. Um romance tem que ser verosímel. Isso só prova que Leonardo da Vinci tinha algumas ideias bizarras, tal como Newton e tantos grandes homens... Todas as extrapolações sobre a Biblia que Brown faz a partir da obra de da Vinci são infantilmente abusivas. O que não quer dizer que não sejam verosimeis durante as cinco horas que levamos a ler o livro. Até as historias do Harry Potter são verosimeis. Pelo menos para mim.

A National Geographic desafia Dan Brown para participar num programa onde se discutem as questões levantadas no Código. Se Dan Brown for lá dizer que aquelas teorias foram inventadas para vender o livro e que não acredita em nada, não há programa. O homem perde milhões em publicidade. Tem portanto de fazer o que lhe pediram e encarnar mais uma vez o narrador do livro. Parece-me mais questionavel o facto de Umberto Eco participar num programa deste tipo. Eco é um professor universitário com uma reputação a defender. O seu amor pelas antiguidades deve ter falado mais alto.

A que deve então o Codigo da Vinci tanta publicidade gratuita? Como é possível que um romancista tenha ganho tanta credibilidade a ponto de tanta gente o querer refutar?

O livro de Kells

Como me disse uma vez um teologo protestante holandês, a maior provação para a fé de um cristão consiste em proceder à uma análise critica da forma como foi escrito o Novo Testamento. Aprendemos que existem quatro evangelhos, que foram escritos por quatro apóstolos. Era essa a crença tradicional. No entanto a posição oficial da igreja não é essa. Sabe-se agora que esses evangelhos foram escritos depois da morte dos apostolos. Marcos é o evangelho mais antigo, escrito por volta de 65-70, Mateus foi escrito depois de 75, Lucas entre 80 e 90 e João entre 95 e 100.

Os católicos acreditavam que Lucas foi baseado em Marcos e Marcos em Mateus. Os protestantes pensavam na sequência Mateus-Lucas-Marcos. Depois de 1863 passou-se a acreditar que existe um evangelho que se perdeu, denominado pela letra Q, e que Lucas e Marcos se basearam em Mateus e Q. Quando se começa a discutir as coisas nestes termos torna-se mais dificil a visão simplista segundo a qual os evangelhos foram escritos directamente sob a inspiração divina. Também há pouca gente que saiba que o papa só passou a ser infalivel em 1870.

Brown aflora outros assuntos incomodos do mesmo tipo, como o facto de Constantino, um imperador romano pagão, ter tido um papel decisivo no estabelecimento dos dogmas da igreja que são encarados pela maioria dos cristãos como valores eternos acima de quaisquer arbitrariedades.

A maior parte dos cristãos não tem bagagem intelectual para lidar com estas verdades que normalmente estão confinadas a um pequeno grupo de pessoas. Ao popularizá-las, Dan Brown põem em causa a estabilidade da Igreja. Há portanto que refutar as parvoíces que Dan Browm diz sobre Maria Madalena e o Graal. De caminho as pessoas esquecem as outras afirmações, as que são indisputaveis verdades. Brown aumentou dois zeros à sua conta bancária com um pequeno golpe de génio: identificou o ponto crítico da igreja, e disparou cinco centimetros ao lado...

Esta é a única explicação que arranjo para o facto de tanta gente sentir a necessidade de refutar o Código da Vinci. Um amigo meu, uma pessoa muito inteligente e um catolico fortemente conservador, passou meia hora a refutar as minhas supostas ideias sobre o Codigo da Vinci. Ao que parece nem reparou que eu não defendi as teorias do Código nem sequer uma vez.

Brown evitou entrar em polémicas sérias. Um dos grandes problemas dos evangelhos é a questão da ressurreição de Jesus. As versões são contraditórias e parecem ter sido acrescentadas mais tarde. Não estou interessado em convencer ninguem de nada. Se estiverem interessados no assunto, peguem numa Biblia, leiam isto, isto e isto, e tirem as vossas conclusões.

Podíamos continuar esta discussão factual. Não é assunto que me interesse por aí além. Parece-me mais importante deixar claro que não considero que saber mais sobre estes assuntos ponha necessariamente em causa a fé cristã. Apenas obriga a repensá-la e aprofundá-la. Convém no entanto lembrar que eu sou um ateu empedernido.
Não queria terminar sem dizer que acho muita graça quando vejo um cristão progressista entalar um cristão mais conservador com uma citação da Biblia. Acho que este exercício de retórica pode ser muito útil para ganhar tempo enquanto as coisas não melhoram. Espero que o cristão progressista não dê demasiada importância à retórica.


De qualquer forma é um pouco estranho pensar que temos quase todos este quadro em casa. O que é que aquele senhor quer fazer com aquela faca aquela senhora?
É verdade! aquela senhora não é uma senhora.

3 comentários:

wind disse...

Mais um bom post que me deu gozo ler:)

dinah disse...

fiquei desapontada com o livro, que acho um ripoff descarado do pêndulo de foucault mas sem a erudição e a provocaçãozinha deliciosa de Eco às novíssimas teorias de interpretação literária e à hermeneutica em geral. E realmente não entendo o porquê deste hype todo à volta de um livro medíocre.

Anónimo disse...

Well done on a nice blog on. I was searching for information on Leonardo da Vinci paintings and came across your post this post - not quite what I was looking for related to Leonardo da Vinci paintings but very interesting all the same!

Well we're already into 2006 and I wish you all the best. I'm doing a lot of original work on Leonardo, including looking in detail at the technical drawings of machines and human anatomy. We're also publishing a detailed analysis of the Last Supper and Annunciation, which should be quite interesting.

If you do have a moment, please take a look at our latest galery on: Leonardo da Vinci .

Wishing you well in the new year! Amon